Filipe Basto, MD, FACP, MHA
Especialista em Medicina Interna,
Fellow American College of Physicians;
Masters in Health Administration, UNC / Chapel Hill
O estudo
Vem este
artigo a propósito de um estudo pioneiro em Portugal, realizado pela IASIST ( link
abaixo ), no qual se equaciona, à semelhança de outros estudos realizados em
países da Europa, América e Austrália, o impacto, no internamento hospitalar,
de admissões, potencialmente evitáveis, decorrentes da agudização de quadros
clínicos crónicos específicos.
Admite-se
assim que o internamento condicionado por estas condições, genericamente denominadas
“Ambulatory Care Sensitive Conditions” ( ACSC), possa ser prevenido se houver uma adequada prestação
de cuidados primários em ambulatório - da prevenção à gestão atempada da doença
subjacente.
Para seleccionar
as patologias específicas em estudo ( no caso: diabetes; hipertensão;
insuficiência cardíaca; doenças cerebrovasculares; DPOC/bronquite; e asma), foi
reproduzida uma metodologia de consenso entre peritos médicos utilizada em
Espanha e utilizados os critérios médicos de justificação para o internamento
aí definidos.
É bom
salientar alguns dos pressupostos associados a esta análise: 1. a prestação de
cuidados em internamento hospitalar é mais dispendiosa do que em ambulatório; 2.
o internamento hospitalar apresenta, de
per si, riscos significativos de iatrogenia pelo que a sua utilização deve
restringir-se ao estritamente necessário; 3. a promoção do acesso e uma
adequada e atempada prestação dos cuidados primários reduz o número de
internamentos por ACSC.
Reduzir o
número de internamentos por ACSC para o nível das necessidades efectivamente
incontornáveis torna-se neste contexto não apenas uma oportunidade para reduzir
custos e preservar a função e a saúde dos cidadãos, mas uma condição
obrigatória de salvaguarda da racionalização do sistema, contribuindo para a efectividade
das prestações, optimizando a eficiência e dinamizando a articulação entre
cuidados primários e hospitalares.
O estudo,
realizado com os dados dos internamentos hospitalares do SNS português entre
2004 e 2012, mostra a sua evolução, global e por patologia, ao longo deste
período, discriminado as variações registadas com o grupo etário e o sexo, e incluindo
a análise da demora média, da taxa de mortalidade e da taxa de reinternamento.
Fornece ainda, para 2012, uma interessante análise da influência geográfica –
localidade de residência - no padrão de internamentos.
A análise
dos resultados é condicionada pelas limitações do estudo e pela sua metodologia,
mas, ainda assim, permite uma visão evolutiva e por vezes surpreendente da
frequência anual dos internamentos, da produção do sistema de saúde português e
das variáveis hospitalares que caracterizam os internamentos nestas diferentes
patologias.
Constitui-se
por isso um excelente pretexto de análise às intervenções e aos resultados
verificados neste período no SNS - nomeadamente no que diz respeito às
importantíssimas variações regionais constatadas - e também aos modelos de organização,
incentivos e financiamento dos cuidados primários.
Mais do que conclusões
taxativas sobre qual é a raiz do problema e as melhores soluções a prosseguir, o
estudo permite identificar áreas onde se impõe uma investigação adicional de
aprofundamento e contextualização, caracterizando, em cada caso, a interacção
entre hospitais e cuidados primários aí verificada.
Os
comentários ao tema e a sua relevância para o internista
O desígnio
do sistema de saúde é o de promover, de forma equitativa, o acesso de cada
indivíduo a este mesmo sistema, garantindo-lhe, de acordo com os recursos
disponíveis e os objectivos definidos, os serviços e os meios (humanos,
materiais …) mais úteis e (estritamente) necessários para assegurar, com a
máxima eficiência, os melhores resultados em saúde. Esta prestação deve por
isso realizar-se no momento oportuno, no local mais apropriado e da forma
mais adequada.
Compreende-se
por isto a importância do indicador “internamentos por ACSC” e a relevância da investigação
complementar que a análise dos seus resultados proporciona na prossecução
destes propósitos. É clara a influência que daí pode resultar para a dinâmica
de organização do sistema e para a adequação das respostas do SNS.
É claro que
a definição de metas e objectivos em saúde e a sua confrontação com realidades
internacionais comparáveis, permitiria uma aferição mais rigorosa dos
resultados, salvaguardando o peso de variáveis associadas ao paciente e à sua
doença, às especificidades do país e à lógica que está subjacente ao sistema.
A percepção
de que muitas destas variáveis decorrem, no momento da análise, de eventos num
tempo remoto, e de que muitas das influências actuais condicionam impacto num
tempo distante, obrigam a uma análise longitudinal, só possível com o registo
sistemático de dados das patologias, dos resultados e das variáveis que
permitam contextualizar a relevância relativa de diferentes factores.
O peso crescente
do envelhecimento, a maior prevalência de doenças crónicas e a presença, num
número crescente de indivíduos, de múltiplas patologias constituem exemplos de factores
de influência cuja importância é naturalmente colorida pela geografia e pelas
diferentes realidades socioculturais e económicas de cada região.
O acesso e a
organização dos cuidados primários são, obviamente, questões essenciais. Deverão
reconhecer-se défices de cobertura, de cuidados ou de “know how”, admitindo
porém que estes factores podem ser apenas uma parte do problema ou da solução –
há experiências internacionais, nomeadamente no Canadá, onde a um melhor acesso
e maior disponibilidade e continuidade de cuidados (primários e especializados)
se associaram, inesperadamente, maior risco de internamento por ACSC.
Parece-nos por
isso que o mais importante é a criação de redes que suportem a comunicação e a
articulação entre os diferentes níveis de cuidados, construindo os trilhos, que
em cada circunstância, se revistam de maior utilidade para os pacientes. Estes
circuitos promoverão não apenas o acesso e a articulação dos cuidados mas
também níveis de responsabilização nos diferentes patamares e dimensões envolvidos,
facilitando a concertação de interesses (dentro e fora do sistema) e a
avaliação, sistemática, dos resultados que é necessário obter.
Estas redes hospital
– cuidados primários - ambulatório, terão de ser dinâmicas e progressivas, estabelecendo,
no local mais adequado, uma resposta ambulatória que ultrapasse a mera solução
do problema agudo, como sabemos muitas vezes garantida pelos serviços de
urgência.
A construção
desta rede pressupõe uma visão estratégica dos problemas, priorizando situações
onde seja mais importante melhorar os resultados em saúde e onde seja mais
relevante racionalizar a existência de um maior consumo de recursos – sabemos que
os consumos podem agregar-se em determinadas circunstâncias e em certos grupos
de “doentes problema”.
O internista
confronta-se, no seu dia-a-dia, com inúmeras situações de internamentos
evitáveis. As situações de internamento por ACSC são uma parte, muito importante
deste universo, que inclui ainda internamentos para casos sociais ou para a
realização de estudos, exames e tratamentos que poderiam perfeitamente ser
feitos em ambulatório.
Muito se tem
feito nos últimos anos para ultrapassar, dentro do sistema, estes problemas, redefinindo
o próprio conceito de um hospital na rede, melhorando a sua resposta e vocação
ambulatória, e optimizando os níveis de coordenação com os Cuidados de Saúde Primários.
A visão de conjunto, a
experiência, a exposição e a capacidade de discriminar e agregar valor entre
diferentes especialidades e diferentes níveis de prestação, conferem ao
internista uma grande utilidade como parceiro essencial na priorização,
reorganização e aferição do impacto dos cuidados prestados.
A sua perspectiva integradora
contribuirá para uma visão não dicotómica dos problemas, reforçando o foco de
centralização nas necessidades do indivíduo e facilitando a comunicação entre
diferentes stakeholders.
O internista
e a medicina interna devem assim constituir-se como uma força proactiva na
promoção de experiências e de investigação consequente neste domínio.
Bibliografia
Caminal J et
al. - Las hospitalizaciones por ambulatory care sensitive conditions: selección
del listado de códigos de diagnóstico válidos para España. Gac Sanit 2001; 15
(2): 128-141.
Weissman JS, Gatsonis C, Epstein AM. - Rates of
avoidable hospitalization by insurance status in Massachusetts and Maryland. JAMA
1992; 268: 2388-2394
The
Lse Companion To Health Policy
Edited by Alistair McGuire, Professor of Health
Economics, LSE, UK and Joan Costa-Font, Harvard University, US. 2012.