PARCERIA NESTORSPMI APAH

PARCERIA NESTORSPMI  APAH

Carta de apresentação

Caros colegas,

O NESTOR - núcleo de estudos de organização e desenvolvimento de serviços de saúde da SPMI - tem procurado facilitar a divulgação e discussão, no âmbito da medicina interna, de temas e questões relevantes para a administração dos serviços de saúde.

A criação do núcleo resultou da influência, crescente, dos princípios de gestão na organização do sistema de saúde português. Deste facto resultaram significativas implicações na tipologia e qualidade dos cuidados prestados à população e, por consequência, na atividade prática diária do internista.

Queremos durante este ano de 2014 dar um novo impulso às iniciativas e à dinâmica do NESTOR, de forma a garantir a perenidade da sua influência e também a alargar o universo de internistas que no futuro possam assumir a continuidade das suas funções.

Criamos para esse efeito um blog - spminestor.blogspot.pt/ - , uma plataforma de interação direta em assuntos relacionados com gestão e organização de serviços de saúde. Publicaremos aí, de forma regular, artigos de referência - por internistas e por outros parceiros - que estimulem a reflexão sobre esta temática.

Teremos durante este ano de 2014 uma relação privilegiada de parceria com a APAH - Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares, o que tornará mais vivas e mais ecléticas as interações e nos permitirá uma maior ambição na diversidade, profundidade e alcance dos temas aqui discutidos.

Convidamo-lo por isso a visitar, o blog do NESTOR no site da SPMI , conhecer o nosso programa para 2014 e a exercer, nesse contexto, uma participação ativa.

Com os melhores cumprimentos,

Filipe Basto

segunda-feira, 7 de abril de 2014

A importância dos registos clínicos para a avaliação da produção e o financiamento hospitalar

Fernando Lopes
Assessor, Departamento de Ciências da Informação e da Decisão em Saúde, Faculdade de Medicina da Universidade do Porto
Médico Auditor da Codificação Clínica, Centro Hospitalar de São João
Presidente, Associação dos Médicos Auditores e Codificadores Clínicos

O sistema de classificação dos episódios de internamento em hospitais de agudos em Grupos de Diagnósticos Homogéneos (GDH) foi criado na década de 60 na Universidade de Yale, nos EUA, com o objetivo de servir de base a sistemas de revisão de utilização com os quais se identificassem variáveis que pudessem explicar os tempos de internamento. A metodologia dos GDH baseou-se nos elementos disponíveis nos resumos de alta dos doentes, em especial o diagnóstico principal, os diagnósticos secundários, as intervenções cirúrgicas e a idade dos doentes.[1]
Com o progressivo desenvolvimento e a melhoria deste sistema de classificação tornou-se evidente a sua utilidade para o estabelecimento de um sistema de pagamento prospetivo (SPP) com o qual o hospital recebe a mesma quantia por cada doente que pertença ao mesmo GDH. O preço é fixado prospectivamente, de maneira que o hospital conheça o que vai receber por cada doente e possa, desse modo, e com base na atividade programada, determinar os valores do seu orçamento (custos e proveitos).[2]
Embora este sistema tenha sido implementado em Portugal, por determinação[3] da Secretario de Estado da Administração da Saúde, o financiamento dos hospitais só a partir de 1996 deixou de ser calculado com base no histórico indexado pela inflação e passou a ser efetivamente influenciado pela produção realizada e avaliada utilizando os GDH, em percentagem progressivamente crescente de ano para ano.
No sistema de classificação em GDH interferem no agrupamento (1) o diagnóstico principal, (2) os diagnósticos adicionais, (3) os procedimentos, em especial os cirúrgicos, (4) a idade, (5) o sexo, (6) o destino após a alta e (7) o peso no caso dos recém-nascidos. São estas variáveis que, com maior ou menor peso, refletem as caraterísticas do doente e da doença típicas de cada GDH: severidade da doença (perda de função e mortalidade), prognóstico (probabilidade de melhoria ou de deterioração, de recorrência e de expectativa de vida), dificuldade no tratamento (sofisticação e dificuldade dos procedimentos), necessidade de intervenção e intensidade no consumo de recursos. Destes vários parâmetros devem relevar-se os diagnósticos adicionais já que é evidente que tratar uma pneumonia num doente previamente saudável ou num doente com insuficiência cardíaca, bronquite crónica, diabetes descompensada, neoplasia pulmonar ou que faz diálise, só para citar alguns exemplos, é totalmente diferente.
Operacionalmente, para que um episódio de internamento seja agrupado num determinado GDH, é necessário que as informações nele registadas sejam codificadas e que os códigos assim obtidos sejam introduzidos no algoritmo de agrupamento juntamente com as outras variáveis atrás referidas. São os médicos codificadores os responsáveis por esta tarefa que passa pela leitura do processo clínico de cada episódio de cuidados, identificação dos diagnósticos e dos procedimentos nele registados e seleção dos códigos adequados da International Classification of Diseases, 9th Revision, Clinical Modification (ICD-9-CM)[4].
Os diagnósticos adicionais de cuja presença, estatisticamente, resulta o prolongamento da estadia do doente em pelo menos um dia e em 75% dos casos, são considerados complicações ou comorbilidades (CC), podem interferir no agrupamento e originar um GDH de maior peso. Mas se o registo clínico for incompleto ou impreciso, ou se o médico codificador não identificar os diagnósticos de complicação ou de comorbilidade, o hospital pode ter um prejuízo real porque os GDH não refletirão corretamente a produção realizada e o financiamento será inferior.
Este é apenas mais um dos motivos pelos quais os médicos hospitalares devem fazer registos clínicos adequados ao doente em tratamento. Para além das informações registadas serem utilizadas por outros colegas quando chamados a colaborar na prestação de cuidados, do histórico assim obtido ser imprescindível quando o doente é posteriormente admitido, da codificação armazenada na base de dados dos GDH ter um valor inestimável em inúmeros estudos epidemiológicos e dos registos serem o único meio de um médico acusado de negligência poder demonstrar que esteve presente, que observou o doente e que prestou cuidados, só a exaustividade da informação pode permitir uma adequada classificação dos episódios em GDH, uma correta avaliação da produção e um financiamento justo.
A utilização de determinadas normas pode ajudar o médico a melhorar os seus registos. Por exemplo, a conformidade com a norma SOAP (Subjetive, Objective, Assessment & Plan) permitirá não esquecer o que é essencial na elaboração dos diários. A estruturação oferecida por uma aplicação como o SAM, no preenchimento dum relatório de alta, é um incentivo, por exemplo, ao registo dos problemas ou da evolução da condição do doente ao longo do episódio de internamento. Do mesmo modo a estruturação dum relato operatório poderá conduzir a um registo dos achados à inspeção do local operado, dos procedimentos realizados, dos dispositivos implantados, e de intercorrências operatórias, tantas vezes esquecidas.
Para que não haja diferenças na codificação efetuada por médicos codificadores diferentes, em alturas ou em hospitais distintos, o sistema de classificação de doenças utilizado, a ICD-9-CM, tem um conjunto de instruções e de normas[5] aplicáveis às quais se vão acrescentando consensos, emitidos pela Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), sempre que necessário. Estão, assim, criadas as condições para a codificação clínica seja aplicada segundo normas precisas e sem desvios, e estabelecido o âmbito das necessárias auditorias interna e externa.
Resta ao médico responsável pelo doente, a quem compete registar o que observa e os cuidados prestados, fazê-lo com o zelo e a exaustividade que garantam que, para além dum diagnóstico principal, todos os diagnósticos adicionais sejam mencionados para que sejam tidos em conta na altura da codificação e do agrupamento em GDH e, consequentemente, a instituição em que trabalha seja justamente ressarcida dos custos dos doentes tratados e possa mesmo, através duma gestão eficiente, ter uma margem para investimento e melhoria sustentada.
O modelo atual de financiamento hospitalar, implementado nos contratos-programa[6], estabelece um preço único por episódio de internamento que, para este ano de 2014, é de 2120,28 €. Poder-se-ia pensar que, se todos os doentes valem o mesmo, não se justificará uma grande exaustividade dos registos. Mas há que ter em conta que o financiamento da instituição, embora baseado no preço único contratualizado, é indexado por um indicador, o índice de casemix[7], calculado a partir da produção e que mede a sua complexidade relativamente aos outros hospitais.
Para o cálculo do casemix contribuem, por um lado, os pesos relativos (PR) da cada GDH, definidos por portaria[8] e, por outro, o número de doentes equivalentes, calculados a partir dos tempos de internamento. Os pesos relativos dos GDH refletem a complexidade: os GDH resultantes de cuidados mais diferenciados ou com diagnósticos adicionais de complicação e/ou comorbilidade (CC) têm um peso mais elevado. A sépsis, por exemplo, é um dos diagnósticos adicionais que mais interferem no PR. Esta é mais uma razão para a necessidade de registos exaustivos: se as comorbilidades existentes não forem registadas e codificadas, os episódios não serão agrupados nos GDH de CC que as preveem, o índice de casemix do hospital não refletirá a complexidade dos cuidados e o financiamento não será por ele indexado como seria justo.




[3] Circular Normativa 1/89. Implementação do Sistema de Pagamento Prospectivo baseado nos GDH
[4] Está previsto para 1 de janeiro de 2016 o início da utilização em Portugal da International Classification of Diseases, 10th Revision, Clinical Modification (ICD-10-CM) juntamente com a International Classification of Diseases, 10th Revision, Procedure Classification System (ICD-10-PCS).

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

A Qualidade em Saúde e a Segurança do Doente

Margarida França
Administradora Hospitalar, Vice-Presidente da APAH*, Presidente da SPQS**, Mestrado em Gestão e Economia da Saúde
* Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares
** Sociedade Portuguesa para a Qualidade na Saúde


A Qualidade em saúde quase se tornou “um lugar comum” e uma referência habitual em qualquer discurso de índole técnica ou política entre os excessos das “falhas” da qualidade à “excelência da “qualidade”. Contudo, raramente estes conceitos são acompanhados de uma definição de conceitos que permita precisar os conteúdos subjacentes às ideias apresentadas de uma forma tão generalista. No mesmo sentido, a publicação de rankings que classificam hospitais com base em parâmetros não consensuais e muitas vezes pouco transparentes. Difunde-se, também, a mensagem que a qualidade decorrente ou implícita ao desempenho das organizações e sistemas de saúde deixou de ser suficiente, sendo agora necessário apresentar bases cientificas relevantes e consistentes.
A entrada em vigor, em 25 de outubro de 2014, da diretiva relativa ao exercício dos direitos dos doentes em matéria de cuidados de saúde transfronteiriços, Diretiva 2011/24/EU do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de março de 2011, veio realçar esta necessidade de evidenciar e documentar de forma clara e transparente a qualidade e segurança dos cuidados de saúde prestados.
Ultrapassada também se encontra a ideia de que níveis mais elevados da qualidade exigem grandes investimentos ou grandes reformas estruturais.
É, pois, sobre estas questões que gostaria de suscitar a reflexão no sentido de contribuir para a clarificação destes conceitos e objetivos.
Com a publicação em 1999 do Relatório “To Err is Human” do Instituto de Medicina Americano (IOM) a temática da segurança do doente assumiu uma preponderância ao nível mundial que levou, aliás, à criação, em outubro de 2004, da World Alliance for Patient Safety por parte da Organização Mundial da Saúde (OMS).  O IOM procedeu no quadro daquela publicação e do Relatório subsequente “Crossing the Quality Chasm” à definição de seis metas de melhoria, nomeadamente a segurança do doente, efetividade dos cuidados, centralização no doente, oportunidade dos cuidados, eficiência e equidade.
Donald Berwick prefere transmitir a mesma mensagem através de cinco declarações de intenção de grande força e impacto: “No needless death. No needless pain. No helplessness. No unwanted waiting. No waste” numa perspetiva de equidade, ou seja, para todos os cidadãos.
Já no ano de 2006, o documento que define o modelo conceptual de base do Health Care Quality Indicator Project da OCDE, apresentava uma recolha das dimensões usadas por diversos Países na avaliação do desempenho e na definição de indicadores da qualidade, aparecendo em primeiro lugar a efetividade, seguido da acessibilidade, centralização do doente, eficiência, equidade, segurança, continuidade, competência, adequação, aceitabilidade, oportunidade e, por último, a capacidade e a sustentabilidade.
Como se afigura lógico e racional, o caráter multidimensional da Qualidade em Saúde acrescenta complexidade ao processo da sua avaliação e correspondente melhoria. A Joint Comission on Healthcare  Organizations (JCHCO)  definia, no ano de 1971,  as dimensões do desempenho dos cuidados de saúde como os atributos do sistema, definíveis e preferencialmente mensuráveis, que estão  relacionados com o seu funcionamento para manter, restaurar ou melhorar a saúde.
A Segurança do Doente emergiu com os relatórios referidos e tem, nos últimos anos, recebido a maior atenção aos níveis internacionais e nacional. Portugal, através da Direção Geral da Saúde tem participado nas mais emblemáticas campanhas da OMS como a “Campanha Nacional de Higiene das Mãos”, a “Cirurgia Segura Salva Vidas” e a “Resistência aos antimicrobianos”.
Peter Pronovost trabalhou o paradigma clássico de Donabedian – estrutura, processo, resultado – na construção de  um modelo para medir o progresso da segurança do doente através da adição de um quarto elemento – a cultura.
Têm sido, pois, significativos os desenvolvimentos da Qualidade em Saúde da última década. Uma vez ultrapassado o desafio de transposição das metodologias e ferramentas usadas na melhoria da qualidade no sector industrial, o esforço concentra-se, agora, na procura da sua efetividade.
A investigação em qualidade na saúde foi alvo de investimento considerável nas últimas décadas no sentido de obtenção de respostas que possam contribuir para uma ação mais racional e efetiva. Contudo, as conclusões de estudos recentemente realizados e em que Portugal participou, nomeadamente o QUASER e o DUQuE, confirmam a persistência de variações significativas na qualidade e na segurança dos cuidados de saúde entre Países e entre regiões do mesmo País.
Mas dado que o número de ferramentas e processos de melhoria da qualidade é imenso, é legítimo perguntar Como e Onde começar? Que ação ou Que Mudança escolher para que possamos obter melhorias reais?
Sabemos já que nem todas as situações de melhoria exigem grandes campanhas ou sistemas de grande porte, crescendo a ideia das soluções que pela inovação ou aplicação organizada e sistemática são fator de mudança e melhoria.
Sabemos, também, que melhores resultados exigem intervenções sistemáticas e continuadas das ferramentas de gestão da qualidade.
Neste mesmo sentido, as conclusões dos Relatórios – Francis Report e Berwick Report – que escrutinaram o caso sentinela ocorrido em Inglaterra no Mid Staffordshire Trust e que colocam a tónica na complexidade da prestação dos cuidados de saúde e na evidência de a qualidade e segurança não serem automáticas, mas antes, exigirem a atenção permanente dos líderes dos diversos níveis de gestão, sob pena de o risco associado aos cuidados crescer descontroladamente.
De facto, como entender no quadro de um Serviço Nacional de Saude moderno e de referência mundial, que um conjunto de problemas no seio de um hospital possa ser causa de mortes e danos evitáveis?
Como entender que após tanto esforço e empenho na inovação da medicina e das organizações da saúde, possa acontecer uma situação trágica como esta do Mid Staffordshire Trust?
Todas as dimensões da qualidade em saúde referidas no presente texto são importantes, sendo que a gravidade e consequente mediatismo deste e outros casos recentes, reforçaram a atenção na Segurança do Doente. Mas novas situações podem vir a colocar a tónica em outras questões ou dimensões, como a equidade e a oportunidade dos cuidados no âmbito ou como consequência de situações particulares, como a atual de agudização da situação económico-financeira do país.
Resta-nos, pois, assumir a Qualidade em saúde na sua globalidade, usando o desdobramento das suas dimensões no sentido da sua melhor abordagem para obtenção dos melhores resultados no quadro da constante evolução e mutabilidade das realidades e ambientes da saúde.


Bibliografia
·         http://www.duque.eu/

·         BERWICK, Donald M. Promising CARE. How We Can Rescue Health Care by Improving It. Institute Healthcare Improvement, Jossey-Bass, San Francisco, 2014, 278.
·         IOM. Crossing The Quality Chasm. A New Health System for the 21st Century.   National Academy Press. IOM, Washington D.C., 2001, 337.
·         Kohn, L, J. Corrigan e M. Donaldson. To Err is Human. Building a Safer Health System. National Academy Press, IOM, Washington D.C., 2000, 287
·         THE BERWICK REPORT. A promise to learn – a commitment to act, National Advisory Group on the Safety of Patients in England, Londres, Agosto 2013, Disponível em: https://www.gov.uk/government/publications/berwick-review-into-patient-safety
·         THE FRANCIS REPORT. Report of the Mid Staffordshire NHS Foundation Trust Public Inquiry, coordenado por Robert Francis QC, 2013, Disponível em: http://www.midstaffspublicinquiry.com/
·         OECD. Health Care Quality Indicators Project. Conceptual Framework Paper, «OECD HEALTH WORKING PAPERS Nº 23» Directorate For Employment, Labour and Social Affairs Employment, March 2006: 36
·         PRONOVOST et al. Framework for patient Safety Research and Improvement, 2009, 119:330-337.  Disponível em: http://circ.ahajournals.org.content/119/2/330


quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Ambulatory Care Sensitive Conditions (ACSC)


Filipe Basto, MD, FACP, MHA 
Especialista em Medicina Interna, 
Fellow American College of Physicians; 
Masters in Health Administration, UNC / Chapel Hill

O estudo
Vem este artigo a propósito de um estudo pioneiro em Portugal, realizado pela IASIST ( link abaixo ), no qual se equaciona, à semelhança de outros estudos realizados em países da Europa, América e Austrália, o impacto, no internamento hospitalar, de admissões, potencialmente evitáveis, decorrentes da agudização de quadros clínicos crónicos específicos.
Admite-se assim que o internamento condicionado por estas condições, genericamente denominadas “Ambulatory Care Sensitive Conditions” ( ACSC),  possa ser prevenido se houver uma adequada prestação de cuidados primários em ambulatório - da prevenção à gestão atempada da doença subjacente.
Para seleccionar as patologias específicas em estudo ( no caso: diabetes; hipertensão; insuficiência cardíaca; doenças cerebrovasculares; DPOC/bronquite; e asma), foi reproduzida uma metodologia de consenso entre peritos médicos utilizada em Espanha e utilizados os critérios médicos de justificação para o internamento aí definidos.
É bom salientar alguns dos pressupostos associados a esta análise: 1. a prestação de cuidados em internamento hospitalar é mais dispendiosa do que em ambulatório; 2. o internamento hospitalar apresenta, de per si, riscos significativos de iatrogenia pelo que a sua utilização deve restringir-se ao estritamente necessário; 3. a promoção do acesso e uma adequada e atempada prestação dos cuidados primários reduz o número de internamentos por ACSC.
Reduzir o número de internamentos por ACSC para o nível das necessidades efectivamente incontornáveis torna-se neste contexto não apenas uma oportunidade para reduzir custos e preservar a função e a saúde dos cidadãos, mas uma condição obrigatória de salvaguarda da racionalização do sistema, contribuindo para a efectividade das prestações, optimizando a eficiência e dinamizando a articulação entre cuidados primários e hospitalares.
O estudo, realizado com os dados dos internamentos hospitalares do SNS português entre 2004 e 2012, mostra a sua evolução, global e por patologia, ao longo deste período, discriminado as variações registadas com o grupo etário e o sexo, e incluindo a análise da demora média, da taxa de mortalidade e da taxa de reinternamento. Fornece ainda, para 2012, uma interessante análise da influência geográfica – localidade de residência - no padrão de internamentos.
A análise dos resultados é condicionada pelas limitações do estudo e pela sua metodologia, mas, ainda assim, permite uma visão evolutiva e por vezes surpreendente da frequência anual dos internamentos, da produção do sistema de saúde português e das variáveis hospitalares que caracterizam os internamentos nestas diferentes patologias.
Constitui-se por isso um excelente pretexto de análise às intervenções e aos resultados verificados neste período no SNS - nomeadamente no que diz respeito às importantíssimas variações regionais constatadas -  e também aos modelos de organização, incentivos e financiamento dos cuidados primários.
Mais do que conclusões taxativas sobre qual é a raiz do problema e as melhores soluções a prosseguir, o estudo permite identificar áreas onde se impõe uma investigação adicional de aprofundamento e contextualização, caracterizando, em cada caso, a interacção entre hospitais e cuidados primários aí verificada.

Os comentários ao tema e a sua relevância para o internista
O desígnio do sistema de saúde é o de promover, de forma equitativa, o acesso de cada indivíduo a este mesmo sistema, garantindo-lhe, de acordo com os recursos disponíveis e os objectivos definidos, os serviços e os meios (humanos, materiais …) mais úteis e (estritamente) necessários para assegurar, com a máxima eficiência, os melhores resultados em saúde. Esta prestação deve por isso realizar-se no momento oportuno, no local mais apropriado e da forma mais adequada.
Compreende-se por isto a importância do indicador “internamentos por ACSC” e a relevância da investigação complementar que a análise dos seus resultados proporciona na prossecução destes propósitos. É clara a influência que daí pode resultar para a dinâmica de organização do sistema e para a adequação das respostas do SNS.
É claro que a definição de metas e objectivos em saúde e a sua confrontação com realidades internacionais comparáveis, permitiria uma aferição mais rigorosa dos resultados, salvaguardando o peso de variáveis associadas ao paciente e à sua doença, às especificidades do país e à lógica que está subjacente ao sistema.
A percepção de que muitas destas variáveis decorrem, no momento da análise, de eventos num tempo remoto, e de que muitas das influências actuais condicionam impacto num tempo distante, obrigam a uma análise longitudinal, só possível com o registo sistemático de dados das patologias, dos resultados e das variáveis que permitam contextualizar a relevância relativa de diferentes factores.
O peso crescente do envelhecimento, a maior prevalência de doenças crónicas e a presença, num número crescente de indivíduos, de múltiplas patologias constituem exemplos de factores de influência cuja importância é naturalmente colorida pela geografia e pelas diferentes realidades socioculturais e económicas de cada região.
O acesso e a organização dos cuidados primários são, obviamente, questões essenciais. Deverão reconhecer-se défices de cobertura, de cuidados ou de “know how”, admitindo porém que estes factores podem ser apenas uma parte do problema ou da solução – há experiências internacionais, nomeadamente no Canadá, onde a um melhor acesso e maior disponibilidade e continuidade de cuidados (primários e especializados) se associaram, inesperadamente, maior risco de internamento por ACSC.
Parece-nos por isso que o mais importante é a criação de redes que suportem a comunicação e a articulação entre os diferentes níveis de cuidados, construindo os trilhos, que em cada circunstância, se revistam de maior utilidade para os pacientes. Estes circuitos promoverão não apenas o acesso e a articulação dos cuidados mas também níveis de responsabilização nos diferentes patamares e dimensões envolvidos, facilitando a concertação de interesses (dentro e fora do sistema) e a avaliação, sistemática, dos resultados que é necessário obter.
Estas redes hospital – cuidados primários - ambulatório, terão de ser dinâmicas e progressivas, estabelecendo, no local mais adequado, uma resposta ambulatória que ultrapasse a mera solução do problema agudo, como sabemos muitas vezes garantida pelos serviços de urgência.
A construção desta rede pressupõe uma visão estratégica dos problemas, priorizando situações onde seja mais importante melhorar os resultados em saúde e onde seja mais relevante racionalizar a existência de um maior consumo de recursos – sabemos que os consumos podem agregar-se em determinadas circunstâncias e em certos grupos de “doentes problema”.
O internista confronta-se, no seu dia-a-dia, com inúmeras situações de internamentos evitáveis. As situações de internamento por ACSC são uma parte, muito importante deste universo, que inclui ainda internamentos para casos sociais ou para a realização de estudos, exames e tratamentos que poderiam perfeitamente ser feitos em ambulatório.
Muito se tem feito nos últimos anos para ultrapassar, dentro do sistema, estes problemas, redefinindo o próprio conceito de um hospital na rede, melhorando a sua resposta e vocação ambulatória, e optimizando os níveis de coordenação com os Cuidados de Saúde Primários.
A visão de conjunto, a experiência, a exposição e a capacidade de discriminar e agregar valor entre diferentes especialidades e diferentes níveis de prestação, conferem ao internista uma grande utilidade como parceiro essencial na priorização, reorganização e aferição do impacto dos cuidados prestados.
A sua perspectiva integradora contribuirá para uma visão não dicotómica dos problemas, reforçando o foco de centralização nas necessidades do indivíduo e facilitando a comunicação entre diferentes stakeholders.
O internista e a medicina interna devem assim constituir-se como uma força proactiva na promoção de experiências e de investigação consequente neste domínio.

Bibliografia

Caminal J et al. - Las hospitalizaciones por ambulatory care sensitive conditions: selección del listado de códigos de diagnóstico válidos para España. Gac Sanit 2001; 15 (2): 128-141.

Weissman JS, Gatsonis C, Epstein AM. - Rates of avoidable hospitalization by insurance status in Massachusetts and Maryland. JAMA 1992; 268: 2388-2394

The Lse Companion To Health Policy
Edited by Alistair McGuire, Professor of Health Economics, LSE, UK and Joan Costa-Font, Harvard University, US. 2012.